segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Estantes de pedra


Manhã de sábado. Muito frio. Dirijo-me ao centro da cidade.
Passo pelo parque a fim de encurtar caminho e, ao mesmo tempo, usufruir da beleza e tranquilidade que a densa vegetação e arvoredo proporcionam. Apenas se ouvem os sons da natureza: o murmurejar da água que corre num sulco feito na terra rumo ao lago; e o rumor do vento que sopra contra as árvores, fazendo voar as últimas folhas do Outono.
É um espaço habitualmente muito frequentado  por quem pretende desanuviar o espírito e  furtar-se ao reboliço da cidade. Mas, hoje, nem vivalma.
Saio pela porta ao lado da domus justitiae,  e deparo-me com o Jardim Thomaz Ribeiro. O escritor tem ali erigido um singular monumento: a “Glorieta”, que é uma estrutura em granito e azulejo com o rosto do homenageado, feito por Jorge Colaço (o mesmo autor dos azulejos da Estação de S. Bento, no Porto); é ladeado por estantes de pedra, onde, em tempos, eram disponibilizadas as obras do Escritor. O conjunto, que inclui bancos de pedra, constituía uma verdadeira biblioteca pública, ao ar livre. Hoje encontra-se, com pena minha, muito danificado!
Tento esquecer, prestando atenção aos  jactos de água que a fonte luminosa faz subir ao alto para cair ruidosamente no lago. Noutros tempos, repleto de peixinhos que faziam as delícias das crianças, agora nem sombra. É mais um sinal da modernidade que sacrifica  velhas preciosidades a novas tecnologias, muitas vezes de discutível utilidade pública.

Sigo à direita, para o Rossio, sempre de braços abertos para os que passam a caminho do serviço ou a título de um simples passeio. De súbito, à minha frente, um grupo de saltimbancos exibe as suas habilidades ao som de instrumentos tocados por músicos ambulantes. A autarquia está empenhada em animar o comércio tradicional, que, de ano para ano, vai perdendo público para as grandes superfícies.
Ainda extasiado,  quase sem dar por isso,  dou comigo em plena Rua Formosa, sempre jovem e, agora, também letrada! É verdade, muito recentemente, à porta do antigo mercado, foi implantada uma estátua do Aquilino Ribeiro: monumento em bronze, que representa o autor do Romance da Raposa, sentado à secretária, ao nível do chão, completamente à mercê do público que por ali passa!

Entro na pastelaria, mesmo em frente da estátua. Mal me sento, o empregado serve  um café fumegante. O aroma desperta os sentidos e incentiva a imaginação. Lanço um olhar através da vitrine e vejo o Escritor... vivo! A sua caneta desliza sobre a folha em branco. As letras sucedem-se, umas às outras até encher completamente a página.
Estupefactos, os meus olhos assistem à revelação do mistério que sempre preside ao acto de escrever. E logo do grande Aquilino!  A página escrita, à minha frente, será sempre a mais bela de toda a sua obra literária.

6 comentários:

  1. O que imaginamos faz aquilo que vemos...

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  2. E eu vejo-te na pastelaria a escrever este belíssimo texto. Quando a imaginação é fértil....a existe real inspiração....não há nada que trave a caneta .

    Foi com enorme satisfação que recebi a tua visita. Ando ausente e a tua chegada surpreendeu-me.

    Espero que haja uma lareira acesa dentro do teu coração . Feliz Natal ! Beijo

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  3. entendo muito bem,

    eu também vejo páginas que ninguém mais vê


    um Feliz Ano de 2014!

    um abraço

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  4. Passo para desejar um ano de 2014 mais próspero e pleno de saúde!

    BJ

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  5. A saída do marasmo, em que se encontra Portugal, passa por fazermos do nosso país uma terra onde prevaleça o primado da Lei e do Direito. Agora, já não apenas o cumprimento formal e inócuo de um conjunto de códigos civis e penais que os romanos nos legaram, mas também um aperfeiçoamento do sistema que tem de prever e fazer cumprir a materialização física da letra e do espírito da LEI no corpo da Nação Real, que sofre. A criativa que me transmitiu esta ideia revolucionária é uma prima minha de Valongo dos Azeites que, atualmente, faz parte do colégio de juízes do Tribunal Constitucional. Ela, como uma grande materialista que é, defende que toda e qualquer norma jurídica precisa de ser plasmada plenamente no viver dos cidadãos de carne e osso para que possa cumprir os requisitos indispensáveis à aprovação e entrada em vigor. Nesta altura do texto, já sou capaz de ouvir as críticas que dizem que uso uma linguagem demasiado hermética. Concordo com as vozes críticas e, neste preciso momento, vou dar a volta ao texto: já fui e já vim, e trago comigo uma ilustração simples, mas muito esclarecedora e visual, para gáudio dos mais novos, daquilo que me proponho transmitir aos meus queridos leitores.
    A minha prima, a doutora juíza Ermelinda Pinhão, defende que, por exemplo, se um cidadão por qualquer razão, seja a perda do emprego, seja a sobrevinda de uma doença do foro orgânico ou psiquiátrico, ou por outras razões ao alcance da imaginação humana, não puder pagar a renda de casa ao senhorio ou, no caso de ser titular da propriedade em questão, não puder pagar as prestações ao banco, deve ter o direito de apelar ao Tribunal Constitucional, ou a outro mais perto do seu local habitual de residência, que terá -por imperativo constitucional, dentro de um prazo razoável que, em caso algum, poderá ultrapassar a duração de um dia de 24 horas-, de lhe arranjar uma boa casa, com pelo menos dez assoalhadas, virada a sul, num local de escolha livre do cidadão. Quanto ao emprego, nessa república pinhoense, a solução passaria pelo tribunal decidir construir uma fábrica de automóveis só para que um requerente profissional de mecânica, por exemplo, tivesse garantido o seu posto de trabalho, ou pela doação simples e direta de 500 ou 600 hectares de boa terra de batata a um lavrador que fizesse, dispensando o advogado que só serviria para atrapalhar, um apelo nesse sentido a quem de direito.
    Talvez por causa desta robustez de pensamento, o povo dos Azeites conta muitas histórias sobre a doutora Ermelinda: umas são manifestamente falsas, fruto de invejas entre as comadres, mas outras terão um fundo de verdade, como a que a seguir apresento:

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  6. Diz que no dia aprazado para que a doutora Ermelinda prestasse provas de ingresso na carreira de Magistrado do Ministério Público, no Centro de Altos Estudos Judiciários, em Coimbra, ela saiu muito cedinho de casa- ainda se via a estrela de alva-, e dirigiu-se, com um carro de bois, preparado de véspera, a uma grande terra de pão, propriedade de seus pais, que ficava mesmo na entrada da aldeia, no lugar das eiras. Mal chegou à terra, já muito bem lavrada a trator na semana anterior, subiu, de um salto, para cima do carro e, de forquilha em punho, começou a espetá-la no estrume húmido, de excrementos de vaca com restos de palha, que fazia erguer com elegância na ponta dos compridos dentes de aço da alfaia, para imediatamente executar amplos e rápidos movimentos circulares que projetavam uma chuva parabólica de flocos de esterco que iam paulatinamente cobrindo a terra com uma camada acastanhada de fertilizante natural. Diz a gente do povo que a doutora só deu por terminada esta exigente e árdua tarefa quando no campanário da igreja bateram as doze badaladas. Com o Sol a pino, tangeu novamente os bois para casa e, ao passar no largo da aldeia, olhando para o largo e fundo tanque de pedra, onde era costume dar de beber às bestas, decidiu, após experimentar com os dedos que a água estava muito fresquinha, despir os trajes de camponesa e, já em biquíni, deu dois valentes mergulhos no grande bebedouro, ficando assim fresca e limpa para a viagem que teria de fazer, da parte de tarde, até Coimbra.
    Chegou a tempo e horas ao Centro de Altos Estudos Judiciários, onde começou por ser submetida à prova escrita que limpou, facilmente, com vinte valores, como quem bebe um copo de água do Luso. Nas provas orais, o júri composto por dez venerandos professores de Direito, atacaram-na com perguntas dificílimas do tipo “Diga-me agora, qual o nome do músculo torno flexor do pescoço?”.
    O pior foi quando chegou a vez da minha prima despejar em cachão as suas respostas cristalinas como a água: instalou-se o pânico entre os lentes examinadores que, após assinarem apressadamente as atas da aprovação com distinção e louvor, começaram a correr como loucos em todas as direções, escapando, aos tombos, por portas e janelas, daquela sala onde um público atónito tinha assistido à sua humilhação intelectual, perante a brilhante defesa da tese “A Constitição Equídea” pela, então, já Senhora Professora Doutora Juíza Ermelinda Pinhão.
    Ainda não eram as dez da noite quando Valongo dos Azeites recebeu em ambiente de euforia, com bombos e fanfarra, a primeira doutora da terra, que tomou calmamente o lugar de honra na mesa principal para o banquete de gala que lhe tinham preparado e, às dez para a meia-noite, a nossa homenageada já palitava os dentes, satisfeita com os dois nacos de javali assado que acabara de devorar.

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